quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Verdade

“Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para um pátio calçado, e chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que já havia feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre; adivinhou que tinha sido enganada; que sua carta de alforria era uma mentira, e que seu amante, não tenho coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
- É está! Disse os soldados que, com um gesto, intimaram a desgraça a seguí-los. Prenderam-na! É escrava minha!

A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmadas no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles sem pestanejar.

Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo, rasgara o ventre de lado a lado.

E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.

Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.

Ele mandou que os conduzissem para sala de visitas”.

O Cortiço, Aloísio Azevedo.

Triste submissão.

“O vendeiro nunca tivera tanta mobília.
- Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta.
Nesses dias ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
- Você agora não tem mais senhor! Declarou em seguida à leitura, que ela ouvia entre lágrimas agradecidas. Agora está livre! Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-reis à peste do cego!
- Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o que era seu!
- Seu ou não seu acabou-se! E vida nova!”.
O Cortiço, Aloísio Azevedo.


O Cortiço, filme.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Horas

“Tenho sido sábio o suficiente para permanecer isolado. Os visitantes são raros nesta casa. Meus nove gatos correm como loucos quando um humano chega. E minha mulher está ficando cada vez mais como eu. Não quero que seja assim. É natural para mim. Mas para Linda não. Fico feliz quando ela pega o carro e sai para encontrar pessoas. Afinal, eu tenho meu maldito hipódromo. Posso sempre escrever sobre o hipódromo, aquele grande buraco vazio de lugar nenhum. Vou para lá me sacrificar, mutilar as horas, assassiná-las. As horas devem ser mortas. Enquanto você está esperando. As horas perfeitas são as que passo nessa máquina. Mas você tem que ter horas imperfeitas para ter as perfeitas. Você tem que matar dez horas para que duas vivam. O que você tem que cuidar é para não matar TODAS as horas, TODOS os anos”.

O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, Charles Bukowski

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Amai, rapazes!

“Amai, rapazes! E, principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam morte pela vida... Amai, rapazes!”

Casmurro
Dom Casmurro, Machado de Assis.


La Môme, La vie en rose, Edith Piaf

Canapé

“Falou-me, quis que lhe falasse, e efetivamente conversamos por alguns minutos, mas tão baixo e abafado que nem as paredes ouviram, elas que têm ouvidos. De resto, se elas ouviram algo, nada entenderam, nem elas nem os móveis, que estavam tão tristes como o dono.”

Bentinho
Dom Casmurro, Machado de Assis.


O Canapé.

Olhos armados.

“Um dos erros da Providência foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro efeito”.

Bentinho
Dom Casmurro. Machado de Assis.


O desespero. O primeiro ciúme.

A primeira suspeita e a última.

“Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, à primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entre nós. Aceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir: era a primeira suspeita e a última”.

Bentinho
Dom Casmurro, Machado de Assis.

Dissimular

“Se olhara para ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular”.

Capitu
Dom Casmurro, Machado de Assis.