“Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para um pátio calçado, e chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que já havia feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre; adivinhou que tinha sido enganada; que sua carta de alforria era uma mentira, e que seu amante, não tenho coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
- É está! Disse os soldados que, com um gesto, intimaram a desgraça a seguí-los. Prenderam-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmadas no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo, rasgara o ventre de lado a lado.
E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinham, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para sala de visitas”.
O Cortiço, Aloísio Azevedo.
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